Rio

Do Leme ao Pontal

A aventura de patrícia de farias frança, primeira mulher a completar a maior maratona aquática do país. Ela é carioca...

Patrícia Vista de baixo da superfície: desafio de 35km Foto: Luiz Frota / Agência O Globo
Patrícia Vista de baixo da superfície: desafio de 35km Foto: Luiz Frota / Agência O Globo

Do Leme ao Pontal/Não há nada igual”, diz o funk-mantra de Tim Maia sobre as belezas do litoral do Rio. Por coincidência nada fortuita, o percurso virou a maior ultramaratona aquática do Brasil. Até maio deste ano, só homens tinham percorrido os 35 quilômetros (mesma distância do Canal da Mancha). Até que, na noite entre os dias 28 e 29 daquele mês, uma carioca habitante do Méier, Patrícia de Farias França, 34 anos, completou, em dez horas e 22 minutos, a almejada prova, ganhando o título de primeira mulher a realizar o feito no mundo (documentado pelo fotógrafo Luiz Frota, cujas imagens, em preto e branco, ilustram este relato).

Nadando por fora da Rio-2016, Patrícia vive uma espécie de olimpíada pessoal non stop, que não depende de índices ou medalhas, não respeita o intervalo de quatro anos e pode acontecer em qualquer lugar do mundo e a qualquer momento:

— Comecei nas piscinas, por causa de uma bronquite. Mas minha paixão sempre foram águas abertas, as ondas do mar. Hoje, meu objetivo é fazer o desafio dos sete mares, que ninguém ainda completou. O Canal de São Jorge, entre Irlanda e Escócia; o Estreito de Cook; o Canal Moloka’i, no Havaí; o Canal da Mancha; o Canal de Catalina, em Los Angeles; o Estreito de Tsugaru, no Japão; e o Estreito de Gibraltar — informa, num bar do Leme, a morena com mechas estilo parafina no cabelo encaracolado (sem touca...), depois de um mergulho em águas de ressaca próximo às pedras do Forte, de onde partiu, meses atrás, para a aventura.

Com a equipe, antes de cair na água Foto: Luiz Frota / Agência O Globo
Com a equipe, antes de cair na água Foto: Luiz Frota / Agência O Globo

Bronquite e asma. Foi assim que tudo começou, na primeira infância: nadar era preciso, para ajudar a melhorar as vias aéreas. Mas a memória inaugural de sua relação com a água é mais idílica: vestida num maiozinho vermelho, aos 3 anos, numa piscininha infantil, no América, em Andaraí. Não muito longe de onde viveu seus primeiros anos: Rio Comprido, ao pé do morro, com o pai, mecânico, e a mãe, dona de casa (hoje, separados).

— Fui parar no Fluminense, clube ao qual fui associada, cheguei a competir, em piscina, meu pai me levava às quatro da manhã aos treinos. Mas eu gostava mesmo de enfrentar a arrebentação, quando ia com os pais à praia, e dos limites que havia além das ondas, lá no fundo — recorda, os olhos vagos.

Ainda faltava uma boa estrada nas piscinas até que ela virasse, de fato, uma fundista. Teve que trabalhar para ajudar os pais a pagar os estudos e, mais adiante, se emancipar. Começou como atendente do McDonald’s.

— Sim, cheguei a ser funcionária do mês, uma ou duas vezes, nos dois anos, entre os 16 e os 17, em que ralei naquele balcão. Mas bom mesmo era o sundae de graça no fim do expediente — ela lambe os beiços, confessando que, hoje em dia, alterna a alimentação para aumentar a massa muscular com visitas explosivas ao Burger King, rejeitando o antigo empregador.

Afinal, é preciso uma porção de gordura e proteína no balanceamento nutricional... Nas dez horas e 22 minutos da travessia, não teve massa nem proteína: só uma rápida hidratação, sem sair do mar, a cada meia hora.

— Era vapt-vupt. Eu nem pensava em descansar, se não, perdia o ritmo.

À uma da manhã, a partida, do Forte do leme Foto: Luiz Frota / Agência O Globo
À uma da manhã, a partida, do Forte do leme Foto: Luiz Frota / Agência O Globo

Patrícia explica que a primeira parte é crucial: do Leme ao Leblon é preciso nadar em ritmo bastante forte, pois, por ali, as águas são mais estáveis. A partir de São Conrado, o tempo fecha, o mar fica mais agitado, as correntes começam a atuar, a linha reta fica mais difícil, mesmo tendo o barco que acompanha o percurso como referência. Nesta luta, é a força do pensamento a maior aliada. Mas... o que se pensa durante mais de dez horas nadando (quase) sem parar?

— Ah, a gente pensa em muitas coisas, dependendo da etapa e da situação. A primeira é a pressa de chegar logo ao Leblon, tipo, já na hora do mergulho inicial, a uma da manhã, já queria chegar ao Posto 12 num pulo. Aí tem uma hora em que não tem jeito: o corpo dá uma quebrada. Mas não pode desacelerar o ritmo, só diminuir as braçadas. Eu começava a contar. Até 50. Até 20. Até 100. E repetir. Pontal. Pontal. Pontal... E ia, e ia, e ia, e ia... — ela narra, revivendo a imersão.

Mas não podia ficar só nisso... Com um sorriso tímido, ela admite que há o momento-paranoia, em que se pergunta que bichos poderia haver por ali.

— Tubarões são improváveis, mas andaram aparecendo umas baleias na região, e trombar com uma baleia não é mole, não. Para espantar tais males, rolava, de hora em hora, uma Ave Maria e um Pai Nosso e, então, eram só os plânctons a brilhar na espuma das braçadas, bonitinhos a valer.

Entre as orações, por que não?, uma musiquinha batida, ela não sabe dizer exatamente de quem, mostra a playlist no celular: “Zayn: Pilow Talk”, ritmada, mas com uma cadência cool, para não perder o rebolado nem virar máquina no mar. E há os companheiros de viagem: atletas masculinos experientes estavam ali, ao seu lado, numa formação com jeito de cardume.

— A gente usa esse termo mesmo, cardume. Fazemos uma oração antes de entrar, gente que gosta dessa linha de travessia, e caímos juntos. É uma boa sensação, de estar acolhida, lutando, batalhando por um mesmo objetivo, à noite, no meio do mar. E do barco também vinham incentivos, além do apito da hidratação. A única coisa que não me veio em mente: desistir. Estou aqui, agora, e vou chegar lá.

Hidratação a cada meia-hora, dez segundos para beber, sem tempo de descanso Foto: Agência O Globo
Hidratação a cada meia-hora, dez segundos para beber, sem tempo de descanso Foto: Agência O Globo

No ano passado, quando fez sua primeira prova que pudesse ser chamada de longa distância (a 14 Bis, de Bertioga a Santos, 24 quilômetros), teve dores, pressão baixa confundida com pressão alta, surtos de ansiedade, problemas no ombro. Melhorou, tomou remédios para a pressão, fez fisioterapia, rezou muito, mas está tudo presente ainda, é preciso abstrair, não ligar para as fisgadas, trabalhar a concentração e investir numa certa crença que supera o próprio treinamento, que inclui entrada, saída, resistência.

— Não é fácil — desabafa.

Nunca foi. Trabalhou para pagar o Ensino Médio técnico, em eletrônica. Havia um detalhe: tinha medo de choque, de forma que até sabe consertar um radinho de pilha, mas não se arrisca. No meio tempo, ainda nadadora de piscina, entrou numa equipe no Maracanãzinho e encontrou, por lá, um pessoal que gostava dessa coisa de longas distâncias.

— Partimos para umas meias-maratonas niteroienses, pequenas, até cinco quilômetros, e chegamos à Travessia dos Fortes (Leme-Posto 6), que era bem tradicional e infelizmente acabou. Então, em 2011, fui morar no Méier, meio casada, e tinha como referência o clube Mackenzie. Lá tinha uma equipe de travessias. Foi onde conheci o Renato Ribeiro, meu técnico até hoje.

A transição da piscina para o mar é curiosa, ela explica. Na piscina, a água é mais pesada, mas não há oscilações nem adversidades. A salgada é mais leve, mas com ela vem a corrente, pode ser gelada, é difícil se ter um norte. Na travessia de maio último, a água estava a 20° Celsius, no limite do agradável, mas o mar se encontrava bem mexido. Na Barra, a corrente estava braba.

— A correnteza começa em São Conrado, vai piorando lá pela Joatinga e na Barra atinge o ápice. Por isso, a gente programou os horários para chegar a esse ponto bem cedinho, e, felizmente, o tempo naquele dia estava bom.

E, enfim, como na música do Paulinho da Viola, o céu azulou na linha do mar, embora bem longe da costa para ouvir o galo cantar. O clarão aconteceu quando Patrícia despontou na Barra (menos que metade do percurso), e os primeiros sinais da manhã deram-lhe boas-vindas.

A dois quilômetros da chegada, com a pedra do Pontal à frente Foto: Luiz Frota / Agência O Globo
A dois quilômetros da chegada, com a pedra do Pontal à frente Foto: Luiz Frota / Agência O Globo

— Passou um bom tempo até que, num determinado momento, olhei para trás e era tudo tão lindo... Aqueles raios solares quase empurrando a gente... Não sei descrever. Antes o céu já tinha clareado um pouco, mas agora eram os pássaros, os bandos, as cores, aquelas cenas que a gente não tem palavras para explicar.

Quem está de fora, no barco e eventualmente no mar, vive essas emoções de outro ponto de vista: o das lentes. Acostumado a acompanhar a luta de Patrícia e a da equipe Navegantes, que ela integra, o fotógrafo Luiz Frota dá seu testemunho:

—Noite e dia, de dentro e fora do mar, foi inesquecível documentar a cidade surgindo e se somando com a emoção de cada braçada da Patrícia nessa poética travessia.

Na vida de Patrícia, a poesia, estritamente falando, passa pela leitura de todo ciclo de Harry Potter e algumas peças de teatro. O resto é mar, é tudo aquilo que nem sempre ela sabe contar. Esteve casada por cinco anos, separou-se, namorou um pouco, mas está há um bom tempo parada. Quase não bebe e quando bebe, é um chope, ou são dois.

Adora o Méier, sua casa hoje. Economiza dinheiro para a conquista dos sete mares e, tendo se formado em administração de empresas com pós em gestão de pessoas, trabalha em marketing de trajes esportivos e em projetos na revista eletrônica “Swimm Channel”.

Por fim, ela chegou, por volta das 11 da manhã, ao Pontal. Precisou de uma hora sentada. Estava inchada, com overdose de hidratação, e não sentia o corpo. O pai fez questão de levá-la para almoçar. Dormiu 12 horas. Mesmo assim, acordou moída. E feliz.

Os cabelos raramente soltos nas fotos, por causa da touca... Foto: Ana Branco / Agência O Globo
Os cabelos raramente soltos nas fotos, por causa da touca... Foto: Ana Branco / Agência O Globo